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Sociopatas: dissimulados, mentirosos, trapaceiros e sem nenhum sentimento de culpa Veículo: Zero Hora
Seção: Vida
Data: 16/09/2006
Estado: RS
Em maio de 1999, o pescador Paulo Sérgio Guimarães da Silva aterrorizou a polícia ao relatar detalhes sórdidos de como tinha matado quatro casais na praia do Cassino e outras cinco pessoas. Contou, sem esboçar culpa ou pena, que depois de matar, esperava a polícia chegar ao local do crime para ver o que as pessoas iriam comentar. Em uma das ocasiões, chegou a dizer alto, entre policiais e curiosos que se acotovelam para ver o corpo do casal estendido nos molhes da praia: "Vai ver, o assassino está por aqui".
Ao ser examinado pela psiquiatra do Instituto Psiquiátrico Forense (IPF) Lisieux Elaine de Borba Telles, após o depoimento prestado à polícia, Paulo Sérgio tinha apenas uma preocupação: queria saber se estava bem na foto publicada nos jornais.
Vaidade, ausência de remorso e juízo moral, desobediência a regras e a longa carreira de delitos e crimes do pescador levaram ao diagnóstico: psicopatia, um transtorno anti-social de personalidade (Tasp) que está presente entre 20% e 70% dos presidiários, segundo o psiquiatra forense Paulo Oscar Teitelbaum.
Esse transtorno de personalidade, porém, não é exclusivo de assassinos. Pelo contrário, sua faceta mais comum circula entre nós. Está nos escritórios, em festas e em famílias como a de dona Maria* (leia o depoimento na página ao lado). Seu filho, Marcos*, não bebe nem fuma e tem uma ficha criminal tão limpa como a de um padre. Em compensação, não pára em emprego, certa vez roubou dinheiro de um tio, foi expulso do quartel após desafiar autoridades e não esboça remorso dos constrangimentos que causa à família. Hoje, aos 28 anos, passa os dias inteiros em casa, jogando videogame. Maria cortou a mesada para frear os gastos. Entrega a ele, no máximo, R$ 10, usados para comprar revistas pornográficas.
Na psiquiatria, Marcos é definido como um psicopata parasitário. Sua conduta não é agressiva como a do assassino da praia do Cassino, mas é igualmente nociva, capaz de destruir famílias e levar empresas à falência. O pior é o prognóstico. A psicopatia, que atinge de 1% a 3% da população, não tem cura.
*Os nomes foram trocados a pedido da entrevistada, para preservar a identidade de sua família
Como eles são
O psicólogo canadense Robert Hare, da Universidade da Columbia Britânica, criou um check-list de pontuação para psicopatia, conhecida como Escala Hare PCL-R (Psychopathy Checklist Revised, em inglês). A tabela foi traduzida e validada em 2000 no Brasil pela psiquiatra forense Hilda Morana.
Entre os sintomas, Hare listou:
Charme superficial /loquacidade
Superestima
Busca por estimulação e tendência ao tédio
Mentira patológica
Manipulação e chantagem
Ausência de remorso ou culpa
Insensibilidade afetiva e emocional
Indiferença e falta de empatia com os outros
Estilo de vida parasitário
Descontroles comportamentais
Promiscuidade sexual
Problemas graves de comportamento na infância
Ausência de metas realistas a longo prazo
Impulsividade
Irresponsabilidade
Incapacidade de arcar com as conseqüências pelos seus próprios atos
Casamentos ou relacionamentos de curta duração
Delinqüência juvenil
Violação de liberdade condicional
Versatilidade criminal
"Seu filho é portador de transtorno anti-social"
"Quando eu aventei a possibilidade de o meu filho ser um psicopata, o terapeuta ficou muito bravo comigo. Falava que o problema era devido a uma baixa auto-estima, que meu filho se sentia rejeitado por ter sido adotado. Eu era a bruxa da história”.
Como ele não comparecia mais à escola, resolvemos matriculá-lo em um curso supletivo. Arrumamos um trabalho para ele, mas ele mentia muito, fazia armações, colocando uns contra os outros, e ficou apenas três meses. Se eu disser que tivemos um dia de paz, estarei mentindo.
Ele foi fazer o serviço militar, e a única coisa que conseguiu foi ficar preso, pois não aceitava as regras e ameaçava seus superiores. Nessa época, ele comprou um apartamento. Como conseguiu, não sabemos. Lógico que ficou sem o imóvel por falta de pagamento - eles conseguem coisas como qualquer mortal.
Depois, foi passar um tempo com os tios. Foi nesse momento que passamos por uma das maiores vergonhas de nossas vidas: ele roubou dinheiro do tio. Nunca soubemos o que ele fez com a quantia roubada.
Lendo uma reportagem, eu fiquei conhecendo uma renomada psiquiatra. O que ela falava era o que ocorria com meu filho. Entrei em contato, marcamos uma consulta com ela, que nos deu o diagnóstico: “Seu filho é portador de transtorno anti-social. Ele é um sociopata”.
Eu chorei pela confirmação daquilo que já suspeitava. Ela nos disse que ele não tinha culpa por ter nascido assim nem nós tínhamos culpa de nada. Eu chorei mais ainda, choro até hoje, porque as cobranças dos familiares eram imensas. Cansei de ouvir que não sabíamos educar filhos, que ele era um safado, sem vergonha e outros adjetivos pejorativos.
Isto ainda ocorre. É muito difícil para as pessoas entenderem. Foi duro, mas pelo menos agora sabemos que a culpa não nos cabia.
Ele começou a namorar, e, mesmo eu alertando a menina, ela engravidou. Não restou alternativa a não ser submetê-lo a vasectomia. O casamento (eles se casaram) durou dois anos e alguns meses. Tiveram uma filha linda, mas hoje estão separados.
Ele trabalhou, conseguiu abrir conta em bancos, passou vários cheques sem fundos. Alguns deles, o pai cobriu, depois não deu mais. Até empréstimo em banco ele conseguiu fazer.
Tentar compreender a mente de um psicopata é uma tarefa impossível. Eles parecem ser atormentados, devem ter algum tipo de sofrimento pela sua condição, já que vivem num vazio enorme. Fazem sofrer os que deles se aproximam, mas agem com enorme indiferença diante do sofrimento que causam.
Se servir de consolo, aconselharia a quem está diante de um indivíduo envolvente, que conta altos papos, que adora tudo do bom e do melhor, mas que nunca tem um centavo no bolso, que sempre encontra uma desculpa para tudo de errado que faz - a culpa é sempre dos outros -, que não pára em nenhum serviço, a fugir enquanto é tempo.
Jamais saberemos precisar quando esta bomba irá explodir. O melhor é se manter longe dessas garras nocivas. Enquanto estivermos vivos faremos tudo para que ele não caia na criminalidade. Depois, só Deus."
Maria*, mãe de Marcos*, 28 anos
São como pessoas normais
Os transtornos da personalidade ocorrem por defeito na formação das funções cerebrais que regem o processo da sociabilidade, explica Hilda Morana, psiquiatra perita do Instituto de Medicina e Criminologia do Estado de São Paulo.
- Os sujeitos com defeitos nessas funções vivem para satisfazer suas próprias necessidades - diz Hilda.
Sob o ponto de vista intelectual, os psicopatas são como as pessoas normais: não têm qualquer prejuízo de suas capacidades de discernimento. Sabem que os outros não vão aceitar o que ele faz e lutam para preservar suas mentiras. Por isso, são dissimulados.
- Eles são cínicos, manipuladores, incapazes de manter uma relação e de amar. Eles mentem sem qualquer vergonha, roubam, abusam, trapaceiam, negligenciam suas famílias e parentes e colocam em risco suas vidas e a de outras pessoas - elenca o neurocientista Renato Sabbatini.
O pesquisador canadense Robert Hare, um dos maiores especialistas em psicopatia, os caracteriza como "predadores intra-espécies que usam charme, manipulação, intimidação e violência". É assim que eles conseguem ganhar a confiança de um colega ou de um parente para pedir um empréstimo ou um favor. Se a pessoa oferecer obstáculos, é capaz de cometer crueldades ímpares, alerta a psiquiatra Hilda Morana.
O que se sabe
- Comportamentos associados às relações sociais são controlados pela parte do cérebro chamado lobo frontal. Lesões ou baixa atividade neural nesta área são a gênese das personalidades antissociais
- O neurologista e autor do O Erro de Descartes, Antonio Damasio, sustenta que pessoas com danos no lobo frontal são incapazes de ativar marcadores somáticos (alterações na freqüência cardíaca e respiração, dilatação das pupilas, sudorese, expressão facial) em resposta à punição
Difícil tratamento
A psicopatia começa na infância ou na adolescência e continua na vida adulta. O diagnóstico é possível, porém, só a partir dos 18 anos, porque até essa idade a personalidade ainda está se sedimentando, afirma o psiquiatra Paulo Oscar Teitelbaum. Crianças com comportamento psicopático são aparentemente imunes à punição dos pais e não são afetados pela dor. Os mais violentos mostram uma história de torturas a pequenos animais, vandalismo, mentiras sistemáticas, roubo, agressões a colegas da escola, desafio à autoridade e fugas.
- Eles costumam ser mais precoces ao iniciar a vida sexual e quebrar regras - afirma a psiquiatra Lisieux Elaine de Borba Telles.
A psicopatia não tem cura, e muitos especialistas acreditam que nem tratamento é possível. Terapia pressupõe que o paciente consiga estabelecer vínculos, uma relação de confiança no médico e fale a verdade. Os psicopatas não conseguem fazer nada disso, atesta o diretor do Instituto Psiquiátrico Forense, Rogério Göttert Cardoso.
Hilda Morana afirma que é viável tratar alguns aspectos com medicamentos e terapia. Mas alerta: estes tratamentos não transformam a personalidade do sujeito, mas rompem padrões de relação e de conduta.